A amostragem de matérias-primas e materiais de embalagem é uma das atividades mais críticas das Boas Práticas de Fabricação (BPF). Embora pareça operacional, trata-se de uma etapa profundamente técnica, pois influencia diretamente a representatividade dos resultados analíticos, o desempenho do processo, a robustez das investigações e a segurança do paciente. Sempre que uma amostra não representa adequadamente o lote, decisões incorretas podem ser tomadas. Isso inclui aceitar materiais inadequados, rejeitar insumos conformes ou comprometer a rastreabilidade.
A indústria farmacêutica lida com matérias-primas que apresentam comportamentos variados quanto à homogeneidade, granulometria, densidade, higroscopicidade e estabilidade. Materiais de embalagem agregam complexidades próprias relacionadas à impressão, identificação, integridade física e interação com o processo de acondicionamento. Para lidar com esse cenário, é indispensável que a amostragem seja estruturada com base científica, fundamentada em riscos e executada por profissionais capacitados.
Este conteúdo reúne fundamentos técnicos, riscos, práticas consolidadas, contextualizações, desafios comuns, dúvidas frequentes e recomendações baseadas em experiências reais da indústria, oferecendo uma visão completa e atemporal do tema.
A representatividade é o princípio que define o valor real de uma amostra. A amostra representa o lote quando captura sua variabilidade natural, refletindo suas características físico-químicas de forma proporcional. Quando isso não ocorre, o resultado analítico se torna insuficiente para embasar decisões técnicas.
A representatividade é comprometida por fatores como segregação durante transporte, estratificação, diferenças de umidade entre recipientes, variações de densidade, material não homogêneo acumulado nas laterais ou no fundo do tambor e falhas de mistura na origem. A coleta deve considerar essas possibilidades e identificar pontos críticos de variação.
Materiais que apresentam estratificação visível, tendência a acúmulo de partículas finas ou comportamento instável com mudanças de umidade exigem abordagens diferenciadas. Em muitos casos, a coleta superficial é ineficaz para representar o lote. O conhecimento profundo do comportamento do material é a base para um plano de amostragem consistente.
Cada matéria-prima possui particularidades que influenciam sua variabilidade. Materiais granulados apresentam segregação por tamanho. Pós finos podem sofrer empedramento com facilidade. Substâncias viscosas exigem técnicas de coleta específicas. Materiais higroscópicos podem alterar características quando expostos ao ar.
Essa variabilidade impacta diretamente a forma como a amostragem deve ser estruturada. A definição da quantidade de recipientes a serem amostrados depende do conhecimento prévio da variabilidade inter-recipient e intra-recipient. A determinação da profundidade de coleta precisa considerar densidade, fluidez, granulometria e comportamento de sedimentação.
A ausência desse entendimento técnico leva a planos de amostragem padronizados e insuficientes, que frequentemente resultam em decisões equivocadas ou aumento de repetições analíticas quando o controle de qualidade percebe inconsistências.
A amostragem é executada manualmente, o que significa que a habilidade do profissional influencia diretamente na confiabilidade do resultado. Erros comuns incluem manipulação inadequada dos recipientes, contaminação cruzada por instrumentos mal higienizados, uso incorreto de sondas, abertura insegura de embalagens e escolha imprecisa dos pontos de coleta.
A capacitação não deve se limitar ao procedimento escrito. É necessário compreender as propriedades do material, reconhecer sinais de não conformidade durante a coleta, interpretar riscos e identificar condições que possam comprometer a integridade da amostra ou alterar seu comportamento.
Treinamentos eficientes abordam técnicas adequadas, higienização, preservação da integridade do recipiente, controle ambiental durante a coleta e cuidados específicos para materiais sensíveis. A experiência prática e o domínio conceitual são fatores decisivos para o sucesso da amostragem.
Antes de coletar qualquer amostra, é essencial garantir que cada recipiente esteja devidamente identificado. A rastreabilidade é uma das principais barreiras de prevenção contra erros de troca. A identificação incorreta pode resultar em uso de material equivocado, mistura de lotes ou impossibilidade de concluir investigações.
A identificação confiável envolve conferir rótulos, verificar integridade das embalagens, avaliar condições de armazenamento e comparar informações com documentação de fornecimento. Recipientes com rotulagem danificada, ilegível ou divergente exigem atenção imediata.
O histórico e a confiabilidade do fornecedor influenciam significativamente a profundidade da amostragem. Fornecedores que demonstram controle robusto do processo, consistência nas entregas, documentação de qualidade confiável e rastreabilidade adequada permitem estratégias de amostragem mais eficientes.
Por outro lado, fornecedores com histórico de desvios, instabilidade nos parâmetros, documentação incompleta ou rastreabilidade limitada exigem planos mais extensos, que incluam amostragem individual, inspeção rigorosa e análises adicionais. A avaliação periódica dos fornecedores permite ajustar o plano de amostragem conforme o desempenho real.
A escolha entre amostras individuais e compostas impacta diretamente a capacidade de detectar variações. A amostra individual permite identificar diferenças entre recipientes e localizar a origem de desvios. A amostra composta é mais eficiente para materiais comprovadamente homogêneos, porém mascara variações quando o material apresenta heterogeneidade.
O uso inadequado de amostras compostas pode diluir contaminantes, ocultar diferenças significativas e dificultar investigações. A escolha deve ser sempre técnica, com base em dados históricos, características do material e riscos associados ao produto final.
Materiais de embalagem apresentam riscos diferentes dos insumos farmacêuticos. Embalagens primárias exigem avaliação rigorosa da integridade, compatibilidade e conformidade, pois têm contato direto com o produto. Embalagens secundárias, especialmente impressas, apresentam risco de erro de identificação e troca de apresentações.
Falhas comuns incluem variações na tonalidade, divergências entre modelos, códigos de barras ilegíveis, falhas de impressão e inconsistência de informações obrigatórias. A amostragem deve incluir inspeção visual detalhada, análise dimensional, conferência de dados e avaliação das características físicas.
O processo de fabricação das embalagens impacta a variabilidade e, consequentemente, a estratégia de amostragem. Processos mais instáveis, como impressões manuais ou cortes menos precisos, tendem a gerar maior variabilidade. Já processos altamente automatizados e controlados apresentam menor risco de falhas.
O entendimento do processo produtivo do fornecedor permite calibrar o plano de amostragem e aplicar inspeções mais eficientes, focadas nos elementos de maior risco.
A estratégia de amostragem não deve ser estática. Ela precisa ser continuamente revisada à luz de tendências, histórico analítico, variações detectadas e desempenho dos fornecedores. O Gerenciamento do Risco à Qualidade, QRM (Quality Risk Management), auxilia na identificação de riscos associados ao material, ao processo e ao fornecedor para definir ajustes proporcionais.
Alguns sinais revelam fragilidades na estratégia atual e indicam que o plano precisa ser revisado. Entre eles estão:
aumento de repetições analíticas
inconsistência entre lotes do mesmo fornecedor
variações significativas entre recipientes
falhas recorrentes de identidade
dificuldades em rastrear desvios associados ao insumo
aumento de investigações envolvendo variabilidade do material
anomalias detectadas durante inspeções de recebimento
A revisão periódica melhora a capacidade de detecção e reduz riscos ao produto final.
Sim. A definição do número de amostras deve ser suportada por métodos estatísticos capazes de garantir representatividade. Esses critérios consideram variabilidade do lote, criticidade do insumo, impacto no processo e histórico do fornecedor. Métodos estatísticos auxiliam na tomada de decisões mais robustas e reduzem riscos de falhas associadas à amostragem insuficiente.
Métodos tradicionais podem ser utilizados desde que tenham justificativa técnica clara e alinhamento ao risco. Eles precisam demonstrar capacidade de representar o lote de maneira adequada. A aplicação depende de análise crítica que considere propriedades do material, variabilidade e histórico de desempenho do fornecedor.
Sim. Quando o fornecedor demonstra sistema de qualidade maduro, controles robustos e consistência nos resultados, o plano de amostragem pode ser ajustado de forma proporcional ao risco. A redução deve ser cuidadosamente fundamentada e acompanhada por avaliações periódicas de desempenho.
Não. Embalagens impressas estão diretamente ligadas à identificação correta do medicamento. A inspeção deve ser mantida para garantir integridade da informação, rastreabilidade e prevenção de erros de rotulagem. A frequência pode ser ajustada, mas a inspeção nunca deve ser eliminada.
Sim. Processos com maior variabilidade exigem planos mais rigorosos. Processos mais estáveis permitem abordagens mais eficientes. A análise do processo de fabricação contribui para determinar a profundidade da amostragem e as inspeções necessárias.
Auditorias no fabricante fornecem informações essenciais sobre a robustez do sistema de qualidade. Embora não sejam o único critério, ajudam a determinar a confiabilidade do fornecedor e influenciam diretamente o rigor do plano de amostragem.
Quando limitações físicas impedem a aplicação de métodos padronizados, soluções alternativas precisam ser empregadas, sempre com base em justificativa técnica. O objetivo é manter a representatividade e evitar contaminação ou alteração das propriedades do material.
O uso dos métodos deve ser proporcional ao risco. Métodos amplamente conhecidos podem ser integrados ao programa, mas sua aplicação deve ser fundamentada em análises técnicas. Caso algum método não seja utilizado, a justificativa deve demonstrar que sua ausência não compromete a representatividade nem a confiabilidade da amostragem.
A amostragem é um processo técnico de alta complexidade e representa um dos pilares essenciais para garantir qualidade, segurança e consistência na fabricação de medicamentos. A compreensão profunda da variabilidade dos materiais, a qualificação criteriosa dos fornecedores, o domínio das técnicas de coleta e a integração ao Gerenciamento do Risco à Qualidade formam a base para tomadas de decisão confiáveis. Quando realizada com rigor, a amostragem fortalece investigações, reduz desvios, diminui repetições analíticas e sustenta um sistema de qualidade sólido e maduro.